Fonte – Carta do Líbano
Conhecido sobretudo por sua produção poética, o escritor, crítico e ensaísta Mário Chamie foi uma figura de ponta na cena cultura de São Paulo entre os anos 1979 e 1983, ao assumir o cargo de secretário de Cultura da cidade – quando criou o Centro Cultural São Paulo e reorganizou a Pinacoteca Municipal. “Um espaço sem portas, para que todos possam entrar”, costumava dizer sobre o Centro Cultural. Descendente de árabes, nasceu na cidade de Cajobi, no interior paulista, em 1933, filho dos imigrantes sírios José e Maria Chamie, naturais de Damasco. Ele teve seis irmãos: Nour (nascida na Síria), Odete, Loré, Elias, Milton e Miguel. O pai era comerciante, proprietário da Casa de Época, que vendia de tudo, como era a tradição deixada pelos pioneiros mascates. Mario se formou em Direito, pela USP, em 1956, além de ser doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Seu primeiro livro, “Espaço Inaugural” (1955) estava alinhado ao movimento vanguardista da Poesia Concreta, assim como as duas obras seguintes, “O Lugar” (1957) e “Os Rodízios” (1958). A ligação com o Concretismo, entretanto, foi rompida no início da década seguinte ao lançar “Lavra Lavra” (1962), inaugurando o movimento Poesia Práxis e vencendo o Prêmio Jabuti da categoria. “A poesia é a metaexpressão de todas as artes”, definia. Sua dedicação à vanguarda artística o levou a iniciar uma série de palestras, inclusive sobre a “nova literatura brasileira”, que lhe rendeu convites para falar às plateias no Líbano, Síria, Egito, Itália, Alemanha e Suíça, entre 1963 e 1964 – a serviço do ministério das Relações Exteriores. Bem como nas universidades americanas de Nova York, Harvard, Columbia, Princenton, Wisconsin e Califórnia (UCLA), onde foi professor do futuro astro do rock, Jim Morrison (1943-1971), líder da banda The Doors, com quem manteve vasta correspondência.
Além da revista Práxis, ligada ao movimento poético – entre os colaboradores estavam o ensaísta José Guilherme Merquior e o cineasta Cacá Diegues – Chamie colaborava com a revista “Mirante das Artes”, dirigida por Pietro Maria Bardi, diretor do Masp. Publicou os volumes de poesia “Now Tomorrow Mau”, “Planoplenário”, “Indústria”, “Conquista de Terreno”, “Objeto Selvagem”, “Sábado na Hora da Escuta” e “A Quinta Parede”, entre outros. Em sua obra de ensaios, destacam-se: “Intertexto”, “A Transgressão do Texto”, “Instauração Práxis”, “Mário de Andrade: Discurso Carnavalesco”, “A Falação Possessória” e “A Palavra Inscrita”. Depois de deixar a Secretaria de Cultura de São Paulo, tornou-se membro do Conselho Federal de Cultura e do Conselho Federal de Política Cultural. Entre os muitos prêmios recebidos estão: Nacional de Poesia, Melhor Obra Poética (da Associação Paulista dos Críticos de Arte), Alphonsus de Guimaraens-Fundação Biblioteca Nacional, Governador do Estado de São Paulo e Medalha de Valor e Mérito do Governo Português. Foi traduzido para o inglês, francês, espanhol, alemão, italiano, holandês, árabe e tcheco. Mário Chamie casou-se com a designer e coreógrafa Emilie Chamie, em 1959. Ela era nascida no Líbano e os dois se conheceram na cidade de Olímpia, no interior paulista. Permaneceram casados até a morte de Emilie, em 2000. O casal teve uma filha, Lina Chamie, nascida em 1961 e hoje cineasta. “Meu pai teve uma carreira brilhante. Era um homem muito inteligente, espirituoso, aprendi com ele o gosto pela arte”, diz Lina Chamie. “Meus pais se completavam. Nossa casa era um ambiente intelectualmente instigante, sempre frequentada por escritores, intelectuais e onde se ouviam conversas interessantes”, conta. Ela se lembra com carinho da biblioteca da casa, onde passava muito tempo com o pai poeta: “Um dia ele me falava sobre o tempo e comentei: ‘Amanhã é o hoje que vem vindo’. Essa frase virou a abertura do seu livro ‘Indústria’, uma obra de poesias Práxis”, diz orgulhosa.
Além da arte e da poesia, Mário Chamie também iniciou a filha em outra de suas paixões, o futebol. Ele a levava, ainda menina de 7 ou 8 anos, para ver os jogos do seu time do coração, o Santos Futebol Clube, e as evoluções em campo de seu ídolo máximo, o rei Pelé. “Virei santista fanática, a ponto de descer a Serra do Mar, até Santos, só para assistir um jogo no estádio da Vila Belmiro”, revela a cineasta que já dirigiu vários longa metragens de ficção e documentários, entre eles dois sobre o clube que aprendeu a amar. O primeiro, “Santos, 100 Anos de Futebol Arte”, dedicado ao pai, foi lançado em 2012, e “Santos de Todos os Gols”, lançado em 2019. “Sinto que alguns filmes meus têm a poesia de meu pai”, conclui. Mário Chamie morreu aos 78 anos, de câncer, em 2011, ainda ativo e com projeto para mais um livro. Dizia: “O mal é ver na poesia, sobretudo, um meio privilegiado de glória, reconhecimento ou consagração pública. Quem a cultiva em busca desse tipo de recompensa errou o caminho”.
AUTO-ESTIMA
Sou Chamie, venho de Damasco. Franco-egípcio é o meu passado. Sírio sou helenizado. De Damasco ao meu legado, sou católico e islâmico, copta apostólico catequizado. No pórtico mediterrânico, sou ático e arábico. Vou contra o deserto de desafetos contrários. Sem custo nem preço que se meça, em nome de meu gênio atlântico e adriático, desprezo a cabeça e a sentença de meus adversários, adversos e vicários.
Sou Chamie, Mário. Franco-egípcio é o meu passado. Por onde entro, venho de Damasco pela porta do apóstolo Paulo. Sírio sou helenizado. Venho de Damasco, por onde saio. – Mário Chamie, do livro “Caravana Contrária”.