Fonte – Carta do Líbano
Antes de fugir dos turcos, os moradores combinaram que para onde quer que fossem passariam a assinar Miziara, em homenagem à terra natal e para que quando se encontrassem, em qualquer lugar do mundo, saberiam quem eram.
O outro ramo da família, agora pelo lado paterno, não menos importante e tradicional é o dos Miziara, sobrenome esse que não é o de batismo e cuja emigração ocorreu de modo diferente às de outras cidades, pois foi um pouco mais traumático e mais doído. Miziara era, como ainda é hoje, uma pacata aldeia situada nas montanhas, 800 m acima do nível do mar, no norte do Líbano, habitada por um povo que levava a vida tranquilamente, meio isolados do restante do país. Segundo o seu atual prefeito, Marun Dina, é a aldeia mais rica do país, graças à diáspora que se iniciou em 1880, coincidindo com o início oficial da emigração para o Brasil pois, após se estabelecerem em suas novas pátrias, passaram a enviar dinheiro aos que lá ficaram, propiciando um grande desenvolvimento. Diáspora, é a dispersão de um povo por perseguição política ou religiosa. Quatro anos antes, em 1876, D. Pedro 2 foi lá, pessoalmente, convidá-los à imigração. O que precipitou a emigração dos habitantes de Miziara foram dois fatores: a dificuldade de trabalho em um país pequeno com uma população relativamente grande. Em 1516, os turcos otomanos invadiram e dominaram, com mão de ferro, o território libanês por 402 anos, até o fim da primeira guerra mundial. Eles não toleravam a menor tentativa de insurreição e os revoltosos eram mortos sumáriamente, juntamente com suas famílias para servir de exemplo. O país era muito pequeno, não tinha exército e o povo começou a passar as maiores privações, principalmente fome, e as revoltas eram cada vez mais frequentes, até que chegou a vez dos habitantes de Miziara aderirem a elas.
Um dia chegou a notícia que o exército otomano encaminhava-se para lá. Foi um alvoroço geral, pois sabiam que não tinham a menor chance de enfrentá-lo, ele que era um dos exércitos mais poderosos do mundo, na época. Com certeza, o resultado seria o extermínio da maior parte de seus habitantes. Imediatamente, os rebeldes prepararam-se para a fuga, alguns levando a família, outros não. Cada um foi para o país que achou melhor sendo que grande parte veio para o Brasil. Segundo relatos, durante a viagem o navio fez escala na Nigéria, para abastecimento, e parte dos passageiros ficou lá pensando que já tivessem chegado ao Brasil. Os outros continuaram aqui chegando e se estabelecendo. Durante os preparativos para a fuga, eles combinaram que para onde quer que fossem passariam a assinar Miziara, primeiro em homenagem à terra natal e segundo, para que quando se encontrassem, em qualquer lugar do mundo, saberiam quem eram pois tinham certeza que, provavelmente, jamais voltariam para lá. Realmente isso aconteceu e acredito que os poucos imigrantes e fugitivos que lá voltaram foram apenas para rever os amigos e familiares. Como já tinham constituído e criado família aqui, não tinham condição de lá permanecerem, levando no coração apenas a saudade que jamais termina.
Os primeiros que vieram, ainda estavam sob o domínio turco e por isso constava em seus passaportes a nacionalidade turca e, por pura ignorância da história, os brasileiros, até hoje, os chamam, pejorativamente, de turcos. Portanto, nem todo Miziara, no Brasil, é parente. São apenas de Miziara. A ligação do Líbano e a cidade de Miziara em particular, com o Brasil é muito grande, tanto que lá o time de sua preferência é a Seleção Brasileira e uma vitória dela, com quem quer que seja, é comemorada com muita festa. A sede da Prefeitura de Miziara é na casa onde nasceu o primeiro emigrante para o Brasil. Na entrada principal, há uma placa com os seguintes dizeres: “Nesse lugar, nessa humilde casa, nasceu Youssef Mussi, em Miziara, no ano 1855. Foi o primeiro libanês que emigrou para as terras do Brasil em 1880”. Este imigrante foi para São José do Rio Preto, onde seus descendentes ainda vivem sendo que um deles, José Miguel Mussi, casou-se com Teresa Cristina Frange Miziara, minha irmã, nascida em Uberaba (MG). Durante essa onda migratória chegaram ao Brasil, quatro integrantes da família Mekdesse ou Mocdisse, Calil, Jorge Miguel, Miguel Jorge e Gabriel (estes, os nomes aqui adotados). O quinto irmão, Felício, não veio, mas mandou os filhos que foram criados pelos tios. Aqui chegando, se dispersaram pelo país: Calil foi inicialmente para São Paulo e, posteriormente, para Frutal (MG). Jorge Miguel foi para Uberaba (MG), Miguel Jorge, para Areias, hoje é Comendador Gomes (MG) e Gabriel, para São José do Rio Preto (SP), locais onde cada um deles constituiu um nucleo familiar que por sua vez foi se ramificando e se espalhando pelo Brasil, de norte a sul. Hoje devem ter em torno de 1500 a 2000 descendentes dos 5 imigrantes que já se espalharam para diversos países, por exemplo, Suécia, Canadá, França, Estados Unidos, etc… O sobrenome Mekdesse ou Mocdisse, práticamente desapareceu pois quase todos o suprimiram e colocaram Miziara em seu lugar. Pouquíssimos o mantiveram como era.
Em junho de 1901, chegou ao Brasil, Nakul Mekdesse Yunes, filho de Jorge Miguel Miziara, aos 18 anos de idade, vindo do Líbano onde era sapateiro e professor pelo mesmo motivo de seus conterrâneos: procurar melhores condições de trabalho. Aqui chegando foi morar com o pai e mudou seu nome para Miguel Jorge Sobrinho, por quem tinha muita amizade e admiração. Aqui estabelecido e rendendo-se ao instinto comerciante, dedicou-se ao comércio da pecuária, viajando a cavalo pelo município comprando e vendendo gado. Em 1906, trouxe suas três irmãs, Uarda (Rosa), Haua e Dauha para o Brasil, após a morte de sua mãe no Líbano. Em 1910, casou-se com uma prima em primeiro grau, Santinha Calil Miziara, residente em São Paulo e filha de seu tio Calil e tiveram 12 filhos. Aliás todos eles tiveram uma grande prole. Calil, três no primeiro casamento em São Paulo e sete no segundo em Frutal, Gabriel, 10 filhos, Miguel, quatro e Felício três. Entre os filhos de Miguel Jorge Sobrinho está meu pai, Jorge Miguel Miziara assim batizado em homenagem a seu avô que falecera poucos meses antes. Casou-se com Dalva, filha de Felicio Frange e tiveram quatro filhos: Cristiano Jorge, casado com Maria Helena morando em Uberaba, Teresa Cristina casada com José Miguel Mussi, bisneto do primeiro imigrante libanês para o Brasil, morando em Fernandópolis (SP), Regina Lúcia casada com Vilmar Marçal de Oliveira, morando em Maringá (PR) e Dalva Maria casada com Eduardo Deodato de Oliveira,
morando em Uberaba. Precocemente, Miguel Jorge tornou-se um excelente e honrado comerciante, ético nos negócios e em suas atitudes. Participou ativamente da vida social uberabense e foi um dos que encabeçou e bancou a luta para trazer a energia elétrica em 1905, quatro anos e meio após sua chegada, aos 23 anos de idade. Em 1924 construiu um casarão que, ainda hoje, se impõe pela beleza e tamanho, com água encanada de cisterna e esgoto, o que, na época, era um luxo para poucos. Foi um homem muito religioso e sempre solícito para com as necessidades dos pobres, procedimento seguido também por sua esposa que continuou a campanha de doação de alimentos, após a morte dele que ocorreu em 7 de janeiro de 1935. Infelizmente não tive o prazer de conviver com ele, mas todos que o conheceram são unânimes em Miguel Jorge Sobrinho e Santinha Calil Miziara afirmar que Miguel Jorge Sobrinho foi um homem digno que passou seu exemplo aos filhos e netos. Além disso foi um homem que sempre dispensou atenção aos mais necessitados, que nunca pensou em guardar apenas para si todo o dinheiro que ganhou com o suor honesto, ao longo dos 34 anos que viveu no Brasil. O que se ganha com trabalho honesto é sagrado e ele sempre fez da caridade uma rotina em sua vida. Mesmo assim, deixou todos os filhos, sem exceção, bem encaminhados em suas profissões. A todos os libaneses, nossos antepassados e desbravadores do Brasil, nossas homenagens. Ninguém morre enquanto nos lembrarmos dele.