Fonte – Carta do Líbano
Da pequena cidade libanesa de Ain Ata até Brasília – capital do país que o acolheu no final dos anos 1950 – a vida do empresário Mohamad Khodr se estendeu por 94 anos.
Sua morte, em junho de 2021, devido ao mal de Parkinson, foi sentida não só pela comunidade libanesa, mas por todos aqueles que o conheceram e partilharam com ele algum momento de sua longa e movimentada vida. Khodr revelou-se um visionário ao se interessar pela nova capital federal quando ela ainda estava no papel, por volta de 1955, como o grande projeto do então candidato a presidente, Juscelino Kubitscheck. O presidente “bossa nova” e Brasília se tornariam um divisor de águas na história do Brasil contemporâneo e igualmente marcariam a vida do empresário para sempre. Comerciante pioneiro no Distrito Federal, abriu a Loja Brasília – a primeira das entrequadras, na área que hoje corresponde à 106 Sul – pouco tempo depois do histórico 21 de abril de 1960, data da inauguração da cidade.
Em pouco tempo, ele viu o local ser tomado por deputados e senadores que iam até a loja para conversar e fizeram do estabelecimento um ponto de encontro de políticos. “Muitos dos problemas da nação foram ali resolvidos”, gostava de dizer Mohamad, com um misto de orgulho e satisfação. “ATÉ BREVE, AIN ATA” Segundo o biógrafo, Amador de Arimathéa (Dô), no livro “Caminhos de um Imigrante – de Ain Ata a Brasília”, a história de Mohamad Khodr começa em 18 de novembro de 1926. Seus pais eram Hassan Khodr e Ghalie Geber, e teve uma irmã, Raya. Com certa modéstia, o empresário não se considerava protagonista de uma saga. “Minha história não é muito diferente de meus patrícios e a eles rendo minhas homenagens”, dizia. Já nas palavras de Arimathéa, era um “homem humilde e magnânimo (…) tem a virtude da temperança e também exige grandes coisas de seu coração e se torna digno com elas”. O pai, Hassan, emigrou para a Argentina quando o filho tinha apenas três anos. Sozinha, Ghalie Khodr criou os dois filhos, contando apenas com a ajuda financeira esporádica do marido distante. A família enfrentou tempos difíceis, sobretudo durante os anos da II Guerra Mundial. A aldeia natal era importante para o rapaz que cresceu longe do pai. Ao sair da sua casa pela última vez, rumo ao Brasil, ele se ajoelhou ao lado das malas e beijou a soleira da porta. Chorando copiosamente jurou para si mesmo e para a mãe: “Sei que vou à luta em terras estranhas, mas sei também que voltarei um dia trazendo a bandeira da vitória, pois não faz parte nenhuma derrota que possa manchar este solo que tanto amo. Até breve, minha querida Ain Ata!”.
O MASCATE SEDUZIDO PELO BRASIL
A jornada em direção ao novo país não foi fácil. Khodr percorreu 5 quilômetros a pé até a condução que o levou ao porto de Beirute. De lá, foram oito dias rumo a Marselha, na França – via Gênova, na Itália. Em direção ao Brasil, passou pela capital do Senegal, Dakar, e foram outros oito dias até o Rio de Janeiro. No dia 15 de setembro de 1949 desembarcou no porto de Santos, em São Paulo. Mas havia ainda mais um destino, a Argentina, onde pretendia se encontrar com o pai. O que aconteceu apenas em
novembro, mais de três meses depois de ter deixado o Líbano. Viveu durante um ano com o pai, mas em 11 de agosto de 1950, decidiu se aventurar sozinho no Brasil, o país que verdadeiramente seduziu Mohamad. Por aqui, o roteiro era conhecido para os “patrícios” recém-chegados: entrar no mercado de trabalho como mascates. Mohamad adquiriu mercadorias variadas nas ruas 25 de Março e José Paulino, na capital paulista, e iniciou a primeira incursão no comércio informal. Decidiu seguir para a região do Triângulo Mineiro, onde outros “patrícios” o aguardavam. A vida de vendedor de porta em porta rendeu grandes histórias, conquistas, trabalho e sucesso. As idas para fazer compras em São Paulo se tornaram frequentes e Mohamad conseguiu superar as dificuldades, especialmente da língua – falava apenas um pouco de espanhol – que foi aprendendo por conta da profissão.
PRIMAVERA O ANO INTEIRO
Os desafios foram imensos, mas o aprendizado também. Depois de muitas viagens e imprevistos para se estabelecer como vendedor itinerante na zona rural mineira, o jovem descobriu que poderia trabalhar nas cidades próximas através do pagamento de uma pequena taxa. Sua base passou a ser a cidade de Conquista, mas viajava constantemente para Araxá e Sacramento. Passou por Uberlândia e Uberaba, Goiandira, Monte Alegre, Itumbiara e Morrinhos. Chegou a pensar em se estabelecer em Uberlândia, mas o destino o levou até a capital do estado vizinho, Goiânia. Por lá alugou sua primeira loja fixa, negociada com benefícios depois de uma conversa com a proprietária, que também era libanesa. Mohamad disse: “Sou de Ain Ata, de Jabal el-Sheikh e sou druso!”. No mesmo instante ela fechou o negócio. Quando questionada, Justificava: “Ele é druso e os drusos seguem firmemente fortes princípios entre eles, o de não causar prejuízos aos outros,seguindo um código de ética de honestidade muito sério”. Assim nasceu a Kadi & Khodr Cia. Ltda., empreendimento de Mohamad em sociedade com os “patrícios” que o ajudaram na chegada à Minas Gerais. Juntos inauguraram, em 14 de novembro de 1951, aquela que seria a mais famosa loja de tecidos de Goiânia, a tradicional Casa Primavera. Nome escolhido pelos sócios porque na cidade era primavera o ano inteiro.
A MOÇA NA FOTOGRAFIA
Na loja, a área próxima ao depósito passou a ser um dormitório, onde o agora empresário também recebia os conhecidos imigrantes, que assim como ele deixaram o Líbano em busca de melhores condições. Khodr fazia questão de ajudar os jovens que chegavam ao Brasil atraídos pela sua história: em apenas um ano e meio no país conseguiu abrir uma loja em sociedade. Nos três anos seguintes acolheu aproximadamente 70 conterrâneos, incentivando e instruindo-os no ofício de mascate, atuando como fornecedor das mercadorias comercializadas por ele. Por essa época, o jovem empresário já estava interessado na moça que se tornaria sua esposa, Zarife Carvalho Gasel. Ele a conhecia apenas poruma fotografia que lhe fora mostrada por um amigo de infância de seu pai, Hamud Ghazale. Zarife era irmã da nora de Ghazale e ele logo decretou que o “sobrinho” Mohamad iria se casar com ela. Havia só um detalhe, a moça morava com a família em Belém do Pará. Zarife nasceu no Brasil, em Abaetetuba, no Paraná, em 1934, filha de Hussein Mahmud Gasel e Mariana Carvalho Gasel. Assim que pode, o jovem empresário viajou para Belém, a fim de conhecer a eterna “moça da fotografia”. Era 1956 e no dia 11 de janeiro do ano seguinte tiveram início as comemorações do casamento dos dois, em Goiânia. A lua de mel foi em Buenos Aires, onde o casal foi recepcionado pelo pai de Khodr. Zarife e Mohamad tiveram sete filhos: Ghalie, Linda, Hassan, Nadia, Nágela, Somaia e Munir.
O SUCESSO NO PLANALTO CENTRAL
Antes do casamento, Khodr começou a desenvolver um outro interesse. Em 1955, Juscelino Kubitscheck candidatou-se à Presidência da República com planos de construir, no Planalto Central, a nova capital do País, Brasília. Dois anos depois, com o presidente mineiro já no poder, Khodr e os sócios começaram a estudar o momento certo de conquistar a Nova Cap. Em 1959 teve início a construção daquela que viria a ser a primeira loja comercial do Plano Piloto: Loja Brasília, inaugurada logo depois da cidade. No primeiro dia de funcionamento houve apenas uma única venda, o que preocupou o empresário. Porém, nos próximos 15 dias as vendas somaram mais do que todo o faturamento mensal da loja de Goiânia, e desse patamar nunca mais saiu – inclusive cresceu a cada dia. O negócio prosperou e eram cada vez mais frequentes as viagens de Khodr para adquirir mercadorias em São Paulo – contando com quatro funcionários no estabelecimento. Ele também precisou se adaptar às necessidades dos novos clientes, inclusive com relação ao horário de funcionamento. O movimento era mais intenso à noite, quando deputados e senadores tomavam conta do espaço, tornando-o um ponto de encontro de políticos e dos que registravam a vida pública do País.
RESGATAR AS RAÍZES E PRESERVAR A MEMÓRIA
Com a prosperidade, a família Khodr que até então vivia em Goiânia – Zarife e três filhos – se transferiu para Brasília. Seis meses depois da inauguração da loja, Mohamad comprou mais dois terrenos ao lado e construiu outras duas lojas, organizando tudo em departamentos. Ali vendia-se de tudo: sabonete, artigos de papelaria, botões, produtos de cama, mesa e banho. A casa da família foi construída em um terreno na Área Sul. Mohamad sempre se orgulhou e celebrou a participação da esposa Zarife no sucesso dos negócios e no cuidado com os filhos. “Companheira de todas as horas, mãe compreensiva e amorosa, zelosa e atenta na criação dos filhos e na preocupação constante de transmitir a eles os valores morais e os costumes sadios herdados de seus pais”, declarou. Cumprindo a promessa que fez à mãe, na soleira da porta, no dia em que deixou Ain Ata, Mohamad voltou à cidade natal, em 1966, após 17 anos. Chegou como saiu, a pé, pois os automóveis ainda não transitavam em suas ruas. “Ao atravessar o pátio e chegar sob o portal de entrada, repeti o gesto da partida: ajoelhei, ergui a cabeça e lembrei das palavras que havia proferido”, contou com muita emoção. Agora um homem de posses, Khodr passou a fazer benfeitorias no local. Primeiro mandou erguer um muro ao redor do cemitério, com portaria e calçada interna, para que as famílias pudessem fazer seus jazigos em forma de gavetas. Preservando a memória dos Khodr, ele também fez com que construíssem um mausoléu da família no local. Seus filhos mais velhos também foram conhecer a avó e a terra do pai. A visita aconteceu em 1974, e os jovens passaram alguns meses no Líbano. “O objetivo era apresentá-los para a minha mãe que sempre cobrava a presença deles”, disse Khodr na ocasião. Em 1976, Mohamad Khodr tornou-se cidadão brasileiro, votando nas primeiras eleições do Distrito Federal, para cargos de senador e deputado, em 1986. Depois de perder os pais e outras pessoas queridas, o empresário queria ficar com a família. “É em casa que gosto de estar, dividir as refeições com minha Zarife, nossos filhos e suas famílias (ele teve dez netos e três bisnetos), para mim isso é celebrar a vida”. Para o imigrante, mascate, empresário, filho, marido e pai, o mais importante, o símbolo da sua jornada e história foi uma mala. A mala com que saiu do Líbano e depois a trouxe de volta inúmeras vezes, possibilitando que ele conhecesse lugares, perdesse o medo de crescer e se transformasse em um homem de sucesso nos negócios. “O mais importante não é o mapa, mas sim a caminhada! Se me fosse dado repetir a vida, com certeza, faria tudo de novo”, resumiu Mohamad Khodr