Fonte – Carta do Líbano
Raul Cutait é filho de Daher Elias Cutait, ícone do Hospital Sírio Libanês. O avós eram libaneses: “Meu avô, Elias Cutait, chegou aqui no fim do século 19, aos 13 anos deidade. Veio do jeito como vieram outros imigrantes libaneses na época. Ele conhecia alguém de sua aldeia que já estava no Brasil. Não sabia nada da língua, não tinha nada de dinheiro, nada de nada”, conta o doutor. Para todos a viagem representava a descoberta da América, porque não faziam ideia se iriam aportar em Santos, São Luís do Maranhão ou Buenos Aires. No Brasil, Elias acabou seguindo o caminho dos conterrâneos que aqui chegaram antes dele. Aprendeu português, trabalhou desde o dia em que chegou e conseguiu juntar algum dinheiro, o que lhe permitiu abrir um pequeno comércio. Também como tantos outros, retornou ao Líbano para se casar. “Meu avô se casou com Eugenie Zurob, uma mulher muita culta, que inclusive havia cursado a Universidade Americana de Beirute, em uma época em que mulheres praticamente não estudavam, pouco estudava. Sempre me questionei como ele conseguiu conquistar minha avó. Ele, um autodidata, e ela uma mulher especial para a sua época”, pondera. O casal viveu um tempo no Líbano, onde nasceram dois filhos, até que Elias resolveu emigrar de vez para o Brasil. “Por aqui nasceram outros cinco filhos, sendo meu pai o mais velho”, relata. “Meu avô voltou com o firme intuito de se tornar brasileiro. Mal falava árabe em casa. Na época, a colônia se protegia se relacionando entre si, mas meu avô queria ser visto como um brasileiro nativo”, recorda e afirma que entende a decisão do avô. “Para se ambientar e se aculturar, ele não poderia se s sentir um expatriado. Tinha que se sentir brasileiro, porém sem perder as raízes libanesas”, ressalva.
Mais tarde, chegou a época de seu pai, Daher Cutait, fazer faculdade e aí começou a se desenhar o destino dele, Raul Cutait, ante mesmo de nascer. “Minha avó paterna era de uma família em que há muitas gerações sempre havia um médico. Ela contou esse fato a meu pai e disse que gostaria que ele fosse o médico da família, o que ele acatou com prazer. Estudou e se formou na Faculdade de Medicina na USP, a única que existia na época em São Paulo”. Daher gostava muito de futebol e jogava no time que viria a ser o São Paulo Futebol Clube, porém teve de decidir entre ser jogador ou médico. Acabou optando pela Medicina. “Mas era um fominha. Adorava futebol”, lembra o filho, com carinho. Ao se formar, o ex-quase craque de futebol mudou-se para os Estados Unidos a fim de cursar um especialização. Na volta, casou-se com Yvonne, filha de um sírio de Homs – a mãe dela, na verdade, nunca soube ao certo quais eram conheceu suas raízes árabes. Na família de Yvonne, a bisavó de Raul Cutait nunca havia aprendido o português e a avó mal falava o idioma. Por isso sua mãe era fluente no árabe e, mesmo assim, nunca usava o idioma para se comunicar com os filhos. “Sou daquela geração que não aprendeu o árabe. Quando se é criança, a gente não valoriza, mas hoje me chateio por não saber. Eu adoraria”, lamenta o médico.
DA CURIOSIDADE AO OFÍCIO
“Fui mordido pela Medicina”, assume Cutait, revelando que o amor pelo ofício foi uma das principais heranças legadas pelo pai. Daher Cutait se tornou um dos cirurgiões mais importantes do Brasil ao longo dos anos, chegando as ser presidente de várias entidades nacionais e internacionais. “O fato é que fui mordido pela Medicina”, diz hoje o filho. “Meu pai tinha um escritório em casa, onde passava boa parte do final de semana, escrevendo artigos científicos e preparando aulas. Lembro, como se fosse ontem, eu sentado ao lado dele, mexendo nas radiografias, olhando com curiosidade e, evidentemente, sem entender nada. Mas o ambiente me agradava e com frequência eu sentava em um canto do escritório e lá ficava fazendo minhas lições do colégio, observando com um canto dos olhos o quanto meu pai estava feliz com o que estava fazendo”. Durante sua vida, Daher Cutait (1913-2001) publicou mais de 120 artigos em publicações médicas do Brasil e do exterior, colaborou com mais de 40 capítulos em diversos livros, publicou três livros e produziu cerca de dez filmes cirúrgicos, alguns deles premiados em festivais internacionais. Como conferencista, participou de mais de 250 eventos nacionais e internacionais e apresentou, em colaboração, mais de 500 contribuições científicas. O filho Raul não poderia ter tido melhor referência e inspiração.
Aos domingos, o dr. Daher colocava os três filhos no carro e ia passar visita aos pacientes no Hospital Osvaldo Cruz. As crianças ficavam brincando no pátio, com um enorme jardim, mas eventualmente Raul pedia para acompanhar o pai nas visitas e, quando era alguém com quem o médico tinha mais proximidade, o pequeno Raul recebia permissão para entrar no quarto do hospital. “Eu ficava na ponta dos pés e esticava o pescoço para ver meu pai fazer um curativo”, lembra. Na adolescência, Raul estudou no Colégio São Luís, uma escola voltada para a preparar futuros engenheiros, do qual ele gostava muito. Mas acabou se transferindo para o Colégio Bandeirantes, que preparava os alunos para a faculdade de Medicina. Ingressou na USP junto com amigos da turma do colégio e logo se interessou pela cirurgia. Fazia cirurgia experimental, aprendendo as técnicas operando animais. Depois da faculdade, fez residência, doutorado, livre docência na USO e fellowship nos Estados Unidos. Assim como seu pai, abraçou a vida acadêmica e universitária, tornando-se professor da Escola de Medicina da USP. Especializado em cirurgia digestiva, Raul Cutait é aclamada referência internacional. É também Doutor Honoris Causa pela Universidade de Medicina e Farmácia de Iasi, na Romênia, e membro da honrosa academia Nacional de Medicina desde 2005. Atuou como Presidente do Conselho Médico do Hospital Sírio Libanês, integra inúmeras entidades médicas e científicas e sua produção científica ostenta mais de uma centena de trabalhos publicados internacionalmente, além de 120 capítulos em diversas obras, escreveu mais de 10 livros e quase uma centena de artigos sobre Medicina e Saúde em jornais diários de grande circulação. Agraciado com 15 prêmios científicos, entre eles um por ter o trabalho mais citado na literatura mundial na área de cirurgia realizado no Brasil. Por seu consultório e sua mesa de cirurgia já passaram vários presidentes e personalidades outras públicas, como os ex-presidentes Lula, Dilma Roussef, Itamar Franco e José Sarney, além do ator Reynaldo Gianecchini e o atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas. Há outros, claro, que ele discretamente não revela. De um desses pacientes, o vice-presidente do governo Lula, José Alencar, Raul Cutait tornou-se um bom amigo e o homenageou com um tributo publicado na “Folha de S.Paulo”, em 2011, por ocasião da morte do político. “Ao longo de quase 14 anos de convívio como um de seus médicos, em que histórias e estórias intermináveis mesclavam-se a discussões sobre suas doenças, aprendi a estimá-lo e a respeitá-lo… No Brasil, acho que Alencar foi o exemplo público máximo de comportamento aberto, dividindo sua doença e seus sentimentos com a população em geral… Na busca de sentir que a vida valeu a pena, até mesmo sem entendê-la em sua plenitude, tentou conquistar amor, felicidade, paz, saúde, sucesso e tantas outras coisas. Para mim, o José chegou lá!”, escreveu no artigo.
LETRAS E MÚSICA
Dono de interesses diversos, Raul Cutait foi convidado em 2010 para integrar a seleta Academia Paulista de Letras, na vaga do empresário José Mindlin, como escritor da área da ciência. “Sempre me agradou escrever. Tenho uma boa produção científica, mas nunca fui de escrever contos e histórias. A ideia de fazer parte de um grupo com nomes como Lygia Fagundes Telles, Paulo Bonfim e vários outros me fascinava”, orgulha-se. Em sua eleição recebeu 38 dos 39 votos dos acadêmicos, fato bastante raro. “Eu me senti muito dignificado por me tornar membro daquele grupo”, comenta. Seu ingresso resgatou a tradição de um médico na Academia Paulista de Letras, instituição centenária fundada pelo médico carioca Joaquim José de Carvalho. Raul Cutait descreve assim as experiências na Academia: “Eu me deliciava com as reuniões. Aliás, continuo me deliciando, porque elas são muito plurais, com pessoas de várias áreas. Não é um encontro onde as pessoas ficam se gabando. É uma reunião com nível de humildade exemplar. Conversamos sobre vários assuntos, desde algo relacionado ao próprio vernáculo, a uma expressão idiomática, até os mais variados temas. A mim atrai muito ouvir pessoas falarem sobre o que fazem, porque lá você encontra maestros, escritores, juristas, atores, tem um pouco de tudo. E cada um com seu viés de vida. Já não sou criança, mas ainda sou dos mais novos”, calcula. Mas para ele Academia precisa ir além. “É muito agradável para os que a frequentam, porém acredito que é possível fazer muito mais. A Academia poderia se abrir e se integrar mais com a comunidade através de projetos, palestras, concertos, etc”, propõe. Embora não seja autor de obras literárias, a relação com a literatura é constante. “Todo livro que sei que vou gostar de ler, eu compro. Mas não consigo lê-los todos por pura falta de tempo. Gosto de livros que tratam do comportamento humano e de questionamentos científicos. Estou agora terminando um livro fascinante, do jornalista Laurentino Gomes, chamado “Escravidão”, sobre essa indignidade que aconteceu no Brasil e há milênios acompanha a história da humanidade”, recomenda.
Sobre a rotina diária, Raul declara ter desistido de dormir muito. Pode não ter hora para dormir, mas tem para acordar. Sempre cedo, bem cedo, que é quando escreve e estuda. À noite, cansado, prefere ficar em casa, embora às vezes saia para assistir concertos de música clássica, seu gênero musical preferido. Ou ainda vai às estreias teatrais para as quais é convidado, já que tem muitos amigos na cena área cultural de São Paulo. A música o acompanha até no exercício da profissão. “Durante muitos anos, eu operava ouvindo música clássica, mas baixinho. Mozart e Beethoven”, revela. Uma história interessante relacionada ao tema é que certa vez, quando ia operar um dos maestros mais aclamados do Brasil e o som foi ligado. Mesmo ainda sedado e sonolento, o paciente passou a reger, com as mãos, a sinfonia que servia de trilha sonora. “A boa música é uma necessidade, traz harmonia e bem-estar”, define. Seu filho Fernando cursou faculdade de música em Boston, nos Estados Unidos e, para Raul, ele é um privilegiado por ter conseguido fazer da música o ponto principal da sua vida. “Sou um pianista frustrado. Tocava mais ou menos, mais para menos do que para mais. E acredito que se alguém não sabe apreciar a música, está faltando um pedaço. A pessoa pode até levar a vida sem saber ler e escrever, mas não sem a música”, sentencia.
O CORAÇÃO LIBANÊS
“Aprendi com meus pais que se deve fazer o bem para si mesmo e para os outros. A integridade, a dedicação, a honestidade, a alegria da vida, tudo isso eu aprendi em casa”, comenta sobre as lições recebidas dos pais. Além desses valores, Raul também recebeu as heranças da cultura e da culinária árabe. “Na minha casa, comemos comida libanesa ao menos três vezes por semana. Cada vez eu me lembro de meus ancestrais e de onde veio a minha família. Sou um brasileiro pleno, mas não renego minha ascendência”, admite. A afeição que sente pelo Líbano, a terra de seus antepassados, e o orgulho por suas origens foram passados para os filhos. Em 2004, Raul partiu com esposa Márcia e os três filhos, Bianca, Raul e Fernando, para uma viagem de resgate da memória familiar. “Eles tinham curiosidade em conhecer o Líbano e lá fomos nós passar duas intensas semanas viajando pelo país, conhecendo suas belezas naturais”, lembra. Na época, o presidente era Emile Lahoud, que havia pouco antes visitado o Hospital Sírio-Libanês, ciceroneado por Cutait. Quando sua família chegou ao país, dois carros do governo os esperavam, para levá-los a todos os lugares. No Palácio do governo, Raul Cutait foi condecorado com a ordem “Commande D’Or” e, junto com toda a família, recebeu a cidadania libanesa. “Meus filhos amaram e hoje dois deles vivem em outros países, nos Estados Unidos e na Suíça, onde não há muitos libaneses, mas a ascendência não se esvai”, garante.