Quando o primeiro libanês chegou ao Ceará, o Brasil ainda tinha um imperador. Mais de um século depois, a comunidade libanesa continua forte e presente no Estado – Fonte – www.opovo.com.br – Autor Leonardo Igor
Quando Demétrio Dibe chegou ao Ceará, em 1888, a população do Estado não chegava sequer a 900 mil habitantes. Antônio Conselheiro ainda deambulava pelo sertão antes de firmar casa em Canudos, o Brasil acabava de encerrar a escravidão, ainda havia aqui um imperador e um Império. Quando Demétrio Dibe chegou ao Ceará, foi o primeiro libanês em terras alencarinas, segundo a revista paulista Carta do Líbano, editada por Fouad Mitri Naime. Antes de se estabelecer aqui, havia passado pelo Piauí, para onde fora recomendado após o desembarque no Rio de Janeiro. Ficou em Fortaleza, mandou trazer a família e deu início a um movimento migratório que, anos mais tarde, estabeleceria os libaneses uma das comunidades de origem estrangeira mais proeminentes no Estado.
Em um momento que os olhos do mundo se voltam condoídos para o drama que se abateu sobre o Líbano, após a explosão na zona portuária de Beirute, a mobilização da comunidade libanesa no Brasil chama a atenção não só pela pungência, mas também pela forte ligação que mantém com a terra natal de seus antepassados. Hoje, há mais libaneses no Brasil que no Líbano. A população expatriada da pequena nação do Oriente Médio, pulverizada por todo o mundo, chega a ser mais que o dobro da população atual vivendo ali. Não só o Brasil era outro quando aportaram os primeiros libaneses – embora a imigração árabe seja ainda mais antiga aqui -, o Líbano também o era. Na verdade, sequer existia enquanto Estado nacional, era parte do então Império Otomano, de maioria muçulmana. Ao entrar no Brasil, Dibe, um cristão greco-ortodoxo, não trazia consigo o azul nem o cedro libanês como brasão em seu passaporte, mas sim documentos de cidadania otomana.
Meio século depois da chegada de Dibe, havia por Fortaleza e circunvizinhanças lojas das famílias Otoch e Romcy, que chegaram a ter mais de uma dezena de estabelecimentos. Foi fundado, na década de 1940, o Clube Líbano Brasileiro, no bairro Aldeota, semelhante aos histórico clube paulista Monte Líbano.
No Centro, resquícios de uma Fortaleza anterior, ainda presente, também trazem a marca libanesa em prédios como no antigo hotel San Pedro, construído pela família Lazar, hoje edifício do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-CE), próximo ao Passeio Público.
Também neste período, em 1963, foi aberta em Fortaleza a Igreja de Nossa Senhora do Líbano, na rua República do Líbano, no Meireles. A instituição, hoje comandada pelo arquimandrita Philip Fouad Louka, segue o rito melquita, isto é, a liturgia bizantina, mas está em comunhão com o papa de Roma. É uma das comunidades cristãs mais importantes no Líbano, ao lado dos maronitas e dos greco-ortodoxos.
Quase cem anos do primeiro libanês no Ceará, um descendente de libaneses, Tasso Jereissati, era eleito governador do Estado. Na cultura, o músico Fagner, também ele descendente de imigrantes vindos do Líbano, emplacou sucessos que marcaram mais de uma geração. E, ainda hoje, suas vidas e trabalho ergueram no Ceará marcas de um povo que, como tantos outros na miscelânea brasileira, cruzaram oceanos em busca de uma vida melhor e acabaram por construir, aqui, um pedaço de sua terra natal.
País dos cedros, dos cumes nevados, das praias, dos rios e do deserto, no Líbano corre um dito popular que afirma ser possível, um mesmo dia, surfar de manhã nas ondas do Mediterrâneo e de tarde esquiar no Monte Líbano. Embora o Ceará não possua clima tal, os libaneses aqui não se furtaram a explorar a região para além do litoral, e constituíram importantes comunidades no interior do Estado, principalmente no Sertão Central.
Segundo a Carta do Líbano, entre os municípios com a maior presença destes imigrantes estão Boa Viagem e Quixadá, cidade natal do deputado estadual Osmar Baquit (PDT), de origem sírio-libanesa, e da família Roque; além de Quixeramobim, a cidade do interior com o maior número de descendentes radicados. Na mesorregião norte, Canindé se distingue, com representantes como a família Karam. No Centro-Sul, Orós também é destaque, cidade, inclusive, onde o cantor Fagner cresceu. No Cariri, a cidade escolhida pelos migrantes foi o Crato.
Ao se debruçar na cidade mais libanesa do interior cearense, Quixeramobim, muitos podem reconhecer sobrenomes famosos ou renomados na região, como Belem, Skeff, Kalil, Abu-Marrul, Nógemo, Acário, Carate, Arsênio, entre outras. Alguns destes envolvidos em atividades políticas, como Leorne Belem, deputado estadual entre 1971 e 1979 e deputado federal entre 1979 e 1987. Foi, inclusive, a família Belem a primeira de libaneses na cidade de Antônio Conselheiro.
Justamente em Quixeramobim, um fato inusitado ficou marcado na população. Na década de 60, um aviador pousou em pleno solo do sertão. Era libanês e não falava uma palavra em português. Do nome, só souberam o primeiro, Raymund. Para compreendê-lo, foram chamar em Quixadá o comerciante Zeque Roque, também vindo do Líbano. Quando os dois encontraram-se, conversaram em árabe e a população, curiosa, finalmente soube do intento do aviador: encontrar seus parentes libaneses.
Eram os Simão, ou melhor, os Abu-Marrul. “Na época do meu avô, ele veio fugido da guerra e tirou o nome Abu-Marrul com medo de perseguição da guerra. Trocou por Simão, José Simão Abu-Marrul”, conta o neto do imigrante, Marcos Simão, funcionário público do município. Cristão maronita, José nasceu em Ein-Ebel, em 1893, e chegou ao Ceará em 1911. Seu irmão, João Simão, veio também.
José foi para Quixeramobim por intermédio de amigos que já estavam estabelecidos no Sertão Central. Mascateou vendendo produtos por Quixeramobim, Madalena e Boa Viagem. Nesta última cidade, conheceu Maria Alice, com quem viria a casar. O nome, Abu-Marrul não foi repassado aos filhos nem aos netos. Mas Marcos Simão, em homenagem ao avô, restituiu o nome aos cinco filhos.
“A gente se reunia muito na casa do meu avô para comer comidas árabes, quibe, suco de romã, tinha um arroz especial, que era com macarrão torrado, tem muitas memórias da culinária árabe na casa do meu avô”, relembra Marcos Simão.
Os dois irmãos, José e João, eram os tios do visitante, cujo sobrenome era Kraish. Quando Raymund Kraish pousou no município, um dos tios, João, havia falecido. Pôde encontrar o outro, José. Ficou na casa da família, com os primos Marum e Tutu Simão, além do pequeno Marcos, criança na época. “Foi complicado, teve que falar por mímicas. E deu certo”, relembra, com humor, da ocasião. “Depois a gente teve que se socorrer do Zeque Roque para traduzir”, explica Marcos.
Os Roque, assim como os Baquit, são uma das famílias descendentes de libaneses em Quixadá. Zeque Roque, comerciante, ia constantemente ao Líbano em visita, mas nunca mais abandonou o Brasil. Dada ocasião, Marcos chegou a aventar conhecer a terra de seu avô na companhia de Zeque, mas o expatriado morreu pouco depois. “É um grande sonho meu, tenho muita vontade de conhecer o Líbano”, conta o Marcos.
Embora três gerações os separem das suas origens, a família Simão Abu-Marrul tem orgulho de seu passado e a explosão na região portuária de Beirute não passou despercebido. “Lamento o ocorrido, as mortes, a situação difícil do país. Que a gente possa aqui no Brasil se mobilizar, contribuir de alguma forma para amenizar o sofrimento do povo libanês, que é um povo tão sofrido”, clama Marcos, neto de José Simão Abu-Marrul.
De Zahlé ao Ceará
Capital do Vale do Beqaa, região hoje com o maior número de brasileiros no Líbano, a cidade de Zahlé é o berço de dois sobrenomes relevantes na história cearense. Um deles, Ary, chega a ser mais utilizado aqui que em São Paulo, onde vive a maior comunidade libanesa no Brasil: há mais de 500 pessoas assinando com o sobrenome Ary no Ceará.
O nome original, Al Kary, foi aportuguesado para Ary e o seu patriarca, Habib Al Kary, jamais esteve no Brasil ou nas Américas. Mas seus cinco filhos, sim. O nome da família aparece volta e meia em vários setores da economia cearense. Um de seus descendentes, Habib Nadra Ary, já nascido aqui, foi um dos grandes nomes da hotelaria no Ceará, proprietário de estabelecimentos como os hotéis Seara, Praiano e o Ponta Mar, na avenida Beira-Mar. Foi também o primeiro presidente da Associação Brasileira de Hotéis (ABIH) no estado.
Outro nome também originário de Zahlé é o Jereissati. Assim como o patriarca dos Ary, o patriarca dos Jereissati não emigrou, mas seus filhos, sim. Aziz, um dos filhos, passou a atuar no ramo de tecidos e foi pai de Carlos Jereissati, que viria ser senador da República. Carlos é pai do atual senador Tasso Jereissati e fundador do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) no Ceará, a convite do então presidente Getúlio Vargas. Hoje, o grupo da família Jereissati controla empresas como a rede de shoppings Iguatemi.
A História Oral dos povos
Apenas em 1888 o Brasil tornou obrigatório o registro de nascimento, casamento e óbito por instituições do Estado. Foi o mesmo ano em que Demétrio Dibe chegou ao Ceará, como o primeiro libanês a andar por aqui. Esse dado, contudo, não está registrado em jornais ou certidões. É fruto de um método de investigação histórica chamado História Oral.
“Geralmente, a imigração é um fenômeno muito estudado pela História Oral. Você vai lá, ouve um relato dos imigrantes, você registra o relato deles e, a partir de elementos comuns a esses registros falados, você desenvolve uma análise”, explica o professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Murilo Meihy, também descendente de libaneses. A chegada de Dibe no Ceará, bem como as do Belem em Quixeramobim, ficou na memória não só destas famílias quanto em seus descendentes ou compatriotas que também chegaram por ali. Foi assim que Fouad Mitri Naime, editor da revista Carta do Líbano, investigou parte da comunidade libanesa no Ceará.
“É um método de investigação histórica muito marcado pela necessidade de ouvir, ao invés de uma história muito vinculada aos documentos escritos, é um entendimento de que os testemunhos, a fala daqueles que experimentaram determinada memória sobre uma experiência histórica, também precisa ser registrada”, detalha Meihy. “Grande parte dos imigrantes e descendentes de libaneses no Brasil construíram uma memória afetiva pelo Líbano, uma memória marcada muito pelas emoções, pelos sabores da comida, os cheiros dos temperos, as palavras em árabe. Então, por essa relação afetiva com a memória, a história oral ou o recolhimento desses testemunhos sobre a experiência histórica são muitos fortes na construção de uma história da imigração libanesa no Brasil”, completa.
Visita do presidente do Líbano e cobertura do O POVO
Há mais de 100 anos participando da história, da economia e da política do Ceará, a força da comunidade libanesa teve sua coroação na recepção promovida pelo então governador Tasso Jereissati – de descendência libanesa – ao presidente do Líbano, Elias Hraoui, em visita ao Brasil no ano de 1997. O mandatário estrangeiro pôs algumas cidades brasileiras no roteiro e decidiu encerrar a viagem em Fortaleza, onde foi recebido pela comunidade local de descendentes.
O presidente Elias Hraoui foi recepcionado no então Hotel Esplanada, o primeiro cinco estrelas de Fortaleza, propriedade do grupo empresarial Otoch, de origem libanesa. Entre os presentes estava o cônsul honorário do Líbano em Fortaleza, Samir Jereissati, que, em entrevista ao O POVO, indicou o desejo de realizar uma pesquisa para mapear o tamanho da comunidade libanesa no Ceará, a maior do Nordeste.
Em reportagem no dia seguinte à visita, O POVO já destacava um dado que, com variações, tem sido invocado nas últimas três décadas sem falta: de que há, no Brasil, mais libaneses que no Líbano. Também destacou que, à época, “a presença do povo libanês no Brasil pode ser verificada principalmente no plano político: são 35 deputados federais e cinco senadores no Congresso. Cinco governadores, entre eles Tasso Jereissati. Além de dezenas de deputados estaduais, prefeitos e vereadores”.
Explosão do porto e impacto no Ceará
A explosão de 2.750 toneladas de nitrato de amônio na zona portuária de Beirute, no dia 4 de agosto, não só destruiu grande parte da capital do Líbano como também ameaça lançar o país em uma crise de abastecimento. Fortemente dependente de importações, cerca de 60% de todos os itens que vêm do exterior entravam no Líbano pelo porto destruído. Entre eles, itens vendidos pelo Ceará.
De acordo com a gerente do centro internacional de negócios da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), Karina Frota, os setores de frutas, calçados e vestuários são os que mais exportam para o país do Oriente Médio. Ainda assim, entre 2010 e 2020, o comércio entre o Ceará e o Líbano vinha sofrendo oscilações.
“Há 10 anos, nós tínhamos uma relação comercial com Líbano mais expressiva. Hoje eu devo exportar 2% do que eu exportava há 10 anos”, revela Karina. Entre os fatores que impactaram a relação comercial estão a concorrência asiática no setor de vestuários e a concentração do setor hortícola cearense no mercado norte-americano. “Sem pandemia e sem explosão, é visível a redução no valor exportado nos últimos anos”, pontua.
Mesmo antes da pandemia do novo coronavírus e da explosão, o país enfrentava uma grave crise econômica com enfraquecimento da moeda, dívida pública de 150% do Produto Interno Bruto (PIB) e desemprego. Desde outubro, a população estava nas ruas em protesto por melhores condições de vida naquela nação que já foi chamada de “Suíça do Oriente Médio” e era o destino preferido dos turistas ricos do Golfo Pérsico.
Agora, segundo Karina Frota, “como o Líbano vai precisar passar por uma fase de reconstrução dessa zona portuária, a situação torna-se ainda mais grave”. Não à toa, seis dias após o desastre, todo o governo renunciou. No Ceará, a despeito da pandemia, a expectativa maior do setor hortícola para exportação estava na segundo semestre, período da safra de melão, item cearense mais comprado pelos libaneses. Agora, as vendas devem cair.
Em 2019, frutas foram 90% de tudo que o Ceará enviou ao país. Ainda assim, o impacto não deve ser sentido entre pequenos e médios negócios, tendo em vista que este tipo de comércio exterior é costumeiramente realizado por empresas maiores, com estratégia de internacionalização e contas mais firmes.
Sobrenomes no Ceará
O professor aposentado de engenharia da Universidade Federal do Ceará (UFC) César Aziz Ary, em colaboração com o empresário e ex-cônsul honorário do Líbano no Ceará, Samir Jereissati, levaram a cabo o levantamento anunciado por Jereissati quando da visita do presidente libanês ao Ceará.
O resultado foi o livro Príncipes da Mente, a história das famílias libanesas no Ceará. Segundo a publicação, existem pelo menos 19 mil descendentes do país dos cedros no Estado. A pesquisa também identificou mais de 100 sobrenomes de origem sírio-libanesa aqui. São eles:
Abdalla, Abbas, Aboud, Acário, Abu-Marrul, Allan, Arsênio, Ary (Al Kary), Asfour(Asfor), Assad, Assef, Auad, Azin, Al-Hauch, Bachá, Belem, Barha(Braga), Baquit, Bardawil, Barguil, Bayde, Bassila, Bittar, Boutala, Bouaiz, Braide, Brandan, Buhmara, Busgaib,Carrah, Carate, Cateb, Catrib, Chaib,Chehab, Daher, Demes, Dibe,Dieb, Duailibe, Dummar, Elias, Farah, Feres, Fecury, Gazelli,Hachem, Haddad,Hamdan, Hagge, Havache, Hissa, Hakimmi, Hellal, Hiluy, Hosn, Ibrahim, Irucus (Roque), Jereissati, Jorge, Kalil, Kayatt, Karam, Kalume, Karbage, Kassuf, Koury, Kham, Kubrusly, Lazar, Lobo (Dib), Lopes (Lubus), Lattif, Mahamud, Mansur, Midauar, Mustafá, Mutran, Najar, Namem, Nasser, Nazar, Nedef, Nógimo, Okka, Otoch, Rachid, Rabay, Rassi, Romcy(Homsi) Rouquez (Roque), Safadi, Said, Salem, Salomão, Sarquis, Saker, Sater, Simão, Skeff, Sleiman, Tahim, Tajra, Tauil, Tebet, Turbay, Zahlut e Zarur.