Por Francine Lima para a Revista Época – 08-02-2008. A dona Violeta veio a falecer em 26-12-2016 aos 108 anos de idade.
Ela abre a porta com o cumprimento de sempre: “Boa tarde, senhoras diretoras”, em tom animado. Na sala de reuniões, a diretoria da Sociedade Beneficente de Senhoras, que administra o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, ouve com atenção a velha dama elegante, presidente honorária do grupo. Dona Violeta Jafet chega aos 100 anos no domingo 10 como um ícone da comunidade árabe no Brasil e da cidade.
Sempre vestindo tailleur (dizem que jamais usou calças compridas), com os cabelos impecavelmente tingidos e penteados, usando jóias vistosas, perfume discreto, maquiagem e sapatos clássicos (“Minha mãe dizia que eu deveria estar sempre em ordem, da cozinha ao salão”), Violeta gosta de bradar que é brasileira – sua família é de origem libanesa – e repete incansavelmente que seu hospital não é nem sírio nem libanês: é “universal”. Costuma citar provérbios árabes. À repórter de ÉPOCA, recitou no idioma original um de seus favoritos, e depois traduziu: “Te recebo de acordo com tua aparência e me despeço de ti de acordo com teu conteúdo”.
Com a ajuda de uma bengala e de uma dama de companhia, Violeta caminha pelos corredores sem deixar passar um detalhe. Se avista uma placa nova, quer saber o que está escrito nela (a vista fraca já depende dos olhos dos outros). Se cruza com algum passante no caminho, quer checar se o conhece e se já o cumprimentou naquela tarde. Na última eleição interna, em 2006, Violeta se afastou da presidência executiva da Sociedade. A gestão foi profissionalizada, mas ela continua a par de tudo e marca presença nas reuniões. Quando não vai ao hospital, acompanha os acontecimentos a distância, telefonando do apartamento onde mora só com os empregados. Costuma dizer que é preciso pensar “15 anos à frente”.
A missão de Violeta é manter vivo o espírito filantrópico que fez nascer o projeto do hospital em 1921, quando ela tinha 13 anos e sua mãe, a libanesa Adma Jafet, recolheu os primeiros contos de réis com a ajuda de amigas da colônia árabe. Enquanto o pai de Violeta, o industrial Basílio Jafet, ficava conhecido por urbanizar o bairro do Ipiranga e vender produtos têxteis na Rua 25 de Março, a mãe buscava doações e aliados. Violeta lembra-se de Adma como uma mulher culta, que se casou no Líbano aos 15 anos com Basílio, duas décadas mais velho, e chegou ao Brasil já tendo traduzido um livro do russo para o árabe. “Você conhece as mulheres antigas? Elas não procuravam ser intelectuais nem nada, mas minha mãe queria que as filhas tivessem cultura.” Ela e a irmã, Ângela (1912-2000), aprenderam piano e idiomas em casa, com professores particulares (“Não freqüentei colégio nenhum”).
A história do Sírio-Libanês está toda registrada em suas paredes, num memorial que não deixa esquecer os nomes por trás de cada tijolo. Quando o primeiro edifício ficou pronto, 20 anos depois da primeira arrecadação de fundos, o governo paulista se apropriou do imóvel e ali instalou uma escola de cadetes. Adma batalhou por anos para recuperá-lo. Sem êxito, morreu do coração em 1956. Violeta achou injusto. Tomou o braço do genro Lourenço Chohfi, seu parceiro na causa, e percorreu quartéis para tentar amolecer políticos e obter o prédio de volta. Aproveitou a visão “mais aberta e mais correta” (como diz) do então governador Jânio Quadros e a influência de outro Jafet, Ricardo, então presidente do Banco do Brasil, para finalmente conseguir resgatar a propriedade, em 1959. Mas o edifício já estava desgastado e impróprio para o atendimento médico necessário numa São Paulo bem maior e mais moderna que a de 1921. O novo prédio do hospital foi inaugurado em 1965.
Cumpridos os papéis de esposa, mãe e dona de casa, já viúva (o marido, Chedid, um industrial do ramo têxtil, morrera do coração em 1957) e com quatro filhos adultos – Basílio, Beatriz, Denise e Irene –, Violeta começava uma nova jornada para transformar o Sírio-Libanês num hospital de vanguarda. Foi ali que se fez a primeira UTI brasileira, entre diversas outras inovações, muitas devidas ao trabalho do diretor-clínico Daher Cutait (1913-2001). Hoje a receita do hospital vem dos convênios médicos (70%) e dos pacientes particulares (30%). As doações espontâneas são esporádicas. Do que se arrecada, a maior parte é reinvestida no hospital e uma gorda parcela é destinada a projetos filantrópicos nas redondezas. “Dona Violeta é a alma deste hospital”, resume Ivette Rizkallah, viúva do filho mais velho de Violeta e atual presidente da Sociedade Beneficente. “É ela quem envolve as pessoas para o trabalho. É indiscutivelmente um ícone, um mito, uma personalidade.”
Na festa de aniversário, marcada para a quinta-feira 14, não podem faltar os 15 bisnetos, descendentes de renome dos imigrantes libaneses e sírios, nem os doces, que Violeta adora. Com boa saúde e sessões semanais de massagem, reiki (terapia com imposição das mãos) e fisioterapia, ela não diz conhecer a receita da longevidade. “Nunca sonhei que chegaria aos 100 anos. Só posso recomendar sobriedade. Não comer demais, nem se divertir demais.” E, é claro, trabalhar. “Quando a gente ama um trabalho e se dedica a ele, e não a qualquer trabalho, esquece o tempo que passou.”